sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Maluf e Tuma responderão por ocultar mortos na ditadura


Quinta-Feira, 26 de Novembro

O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) ofereceu hoje denúncia à Justiça Federal contra o ex-governador de São Paulo, deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), e o senador Romeu Tuma (PTB-SP) por ocultação de cadáveres durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Além dos dois parlamentares, foram denunciados em duas ações civis públicas o ex-prefeito da capital paulista Miguel Colasuonno, o médico legista e ex-chefe do necrotério do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo Harry Shibata, e o ex-diretor do Serviço Funerário Municipal Fábio Pereira Bueno.

O MPF-SP requer na Justiça que os cinco percam suas funções públicas e o direito à aposentadoria, bem como sejam condenados a reparar danos morais coletivos, mediante indenização de, no mínimo, 10% do patrimônio pessoal de cada um. Por se tratar de ações civis públicas, a iniciativa não ameaça os mandatos de Tuma e Maluf, protegidos pela Constituição Federal. A procuradora responsável pelo caso, Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, propôs que as indenizações sejam revertidas em medidas que preservem a memória das vítimas da ditadura.

Nas ações entregues à Justiça, o MPF-SP afirma que desaparecidos políticos foram sepultados nos cemitérios de Perus e Vila Formosa, na capital paulista, de forma "ilegal" e "clandestina", com a participação do IML e da Prefeitura de São Paulo. Segundo a procuradora, ambos contribuíram para que as ossadas permanecessem sem identificação em valas comuns dos cemitérios e atestaram falsos motivos de morte a vítimas de tortura. De acordo com a denúncia, o legista Harry Shibata teria ocultado os reais motivos dos óbitos de inúmeros militantes políticos, como, por exemplo, do jornalista Vladimir Herzog.

O MPF-SP aponta que Paulo Maluf, quando era prefeito, ordenou a construção do cemitério de Perus. De acordo com as ações, algumas valas do recinto tinham quadras marcadas específicas para receber a ossada de "terroristas". Os documentos entregues à Justiça apontam ainda que o projeto original do cemitério previa um crematório, mas a Prefeitura desistiu após a empresa contratada ter estranhado o plano, que não previa um hall para orações. De acordo com o MPF-SP, o governo municipal chegou a fazer sugestões buscando mudar a legislação para dispensar a autorização da família para realizar procedimento, o que possibilitaria que indigentes fossem cremados.

As denúncias salientam ainda a participação nas operações de agentes do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Deops, órgão estadual de repressão que teve como chefe o atual senador Romeu Tuma. Segundo o MPF-SP, há documentos que comprovam a ocorrência de interrogatórios "sob tortura" na instituição e que demonstram que Tuma tinha conhecimento das várias mortes ocorridas sob a tutela de policiais do Deops, mas não as comunicou aos familiares dos mortos.

As ações civis públicas oferecidas hoje pelo MPF não são as primeiras que procuram responsabilizar o Estado pela ocultação da ossada de perseguidos políticos. No Distrito Federal tramita ação, com atuação do MPF-DF e do MPF-PA, para identificar guerrilheiros e moradores da região do Araguaia, mortos na ofensiva do governo para exterminar a guerrilha na década de 1970. No Rio Grande do Sul, o MPF pediu a abertura de inquérito para que sejam apuradas as reais circunstâncias da morte do presidente João Goulart, na Argentina, em 1976.

"Depois de 39 anos, abordar de forma leviana um assunto dessa natureza é no mínimo uma acusação ridícula", disse Maluf, em nota. A reportagem procurou Tuma, mas o senador estava em voo. Segundo sua assessoria, Tuma ainda não recebeu informações sobre a denúncia.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

“Precisamos de uma Internacional de movimentos sociais”

Vice-presidente da Bolívia cobra mais iniciativa dos movimentos sociais latino-americanos e pede visão “continentalizada” da esquerda

18/11/2009


Elena Apilánez e Vinicius Mansur

de La Paz (Bolívia)


Álvaro García Linera não é um vice qualquer. Além de acumular o posto de presidente do Congresso boliviano, ele é um dos principais responsáveis pelas articulações políticas do governo de Evo Morales e talvez o mais destacado teórico do processo pelo qual passa a Bolívia atualmente. Sua larga bagagem política e intelectual, além de o credenciar a receber títulos como o “vice-presidente mais atuante do continente” ou o “intelectual mais importante da América Latina na atualidade”, também o capacita para dar largas e aprofundadas respostas, fazendo com que nossa entrevista não chegasse nem à metade das perguntas preparadas. Em meio à atribulada agenda de um vice-presidente e candidato à reeleição em campanha, Álvaro García concedeu ao Brasil de Fato duas rápidas horas de uma conversa pouco factual e mais analítica sobre o processo político que vive a América Latina, em geral, e a Bolívia, em particular.


cumbre_bolivia

Brasil de Fato – Um olhar sobre a história política latino-americana indica que, de certa forma, ela se move por ondas. O senhor acha que essa ascensão recente de governos oriundos de organizações com trajetórias de esquerda configura uma nova onda?

Álvaro García Linera – Creio que este é um ciclo muito novo e inovador sem comparação nos últimos 100 anos da história política latino-americana. A única coisa comum no século 20 foram as ditaduras militares. Fora disso, a esquerda teve presença descompassada na região. Processo parecido foi a onda de luta armada, mas não era presença vitoriosa de esquerda; era combativa, resistente, por parte da ala mais radicalizada. A vitória em Cuba trouxe uma leva guerrilheira, que nos anos 1960 estava em todo o continente. Quando a esquerda armada triunfa na Nicarágua, o continente já tinha outros ritmos, outras rotas. Então, pela primeira vez em 100 anos há uma sintonia territorial da esquerda, com governos progressistas e revolucionários. A direita já tinha essa habilidade de “continentalizar” suas ações.



Quais elementos dão unidade a essa sintonia?

O que permitiu a leva de governos progressistas foi o ciclo neoliberal. Ciclo que, mais ou menos, golpeou todos os países de maneira quase simultânea em seus efeitos e defeitos. O atual processo é muito inovador por seu caráter “continentalizado” de esquerda, pela busca de políticas pós-neoliberais – umas mais radicais, outras menos –, por ser um ascenso da esquerda através da via democrática-eleitoral, por ser a primeira vez que ela projeta estratégias de caráter estrutural coordenadas a nível continental. Antes, a esquerda tinha um olhar sobre o continente em termos da conspiração revolucionária. Nunca em termos de economia, de comércio, de criar um mercado comum, uma defesa comum. É uma série de desafios sobre os quais ela nunca tinha refletido, que tem a ver com o exercício de governo, com sua maturidade de reflexão. E também é inovador porque isso se faz sem um pensamento único de esquerda. Não há um referente comum como a URSS, por sorte; não está a China, melhor ainda. O processo de esquerda são muitas coisas agora. Pode ser marxista ultra-radical, pode ser socialista, pode ser vinculado ao pós-modernismo intelectual, pode ser mais nacionalista... e todos são esquerda. Isso é muito rico, permite uma pluralidade de reflexões, de discursos, de ideias. Não há o modelo a imitar ou uma “igreja” que dita o bom comportamento, como ditava antes. É um momento de reconstrução plural do pensamento de esquerda, ainda primitivo. Mas, temos que ver a história em processos que podem durar 50, 80 anos. Não nos desesperemos por não ter as coisas consolidadas agora, por não termos com claridade um grande programa de esquerda continental e mundial. Isso vai demorar 20 anos pelo menos, depois de várias derrotas, de várias vitórias e outras derrotas. Este é um momento germinal e ainda há pedaços do continente que estão em outro rumo. Isso é normal, inclusive, é possível prever a curto prazo uma volta parcial do pensamento e dos governos de direita em alguns países no continente e não vamos nos assustar. Lutemos contra isso, mas este é um processo longo e lento, vai requerer ainda várias levas de ascenso social e popular que permitam despertar toda a potência desse momento histórico, que ainda não se fez visibilizar totalmente. Ainda faltam novas ondas. Não esqueça que Marx usava o conceito de revolução por ondas. Elas vão e voltam, logo vêm de novo e regressam um pouco. A onda atual é das primeiras, logo haverá um pequeno refluxo à espera de uma nova onda que permitirá, a depender dos homens e mulheres de carne e osso, expandi-la a outros territórios e aprofundar as mudanças que até agora são superficiais, parcialmente estruturais.


Este processo coloca a superação do capitalismo em jogo?

Marx dizia que o comunismo é o movimento real, que se desenvolve diante de nossos olhos, e que supera a ordem existente. Não é uma questão de teoria, de discurso, é questão de realidade. E está claro que a primeira meta pautada pelas forças populares diversas do continente foi, em primeiro lugar, frear o esvaziamento social, democrático e material que caracterizou o processo neoliberal. Esvaziamento material a partir da exteriorização dos excedentes, esvaziamento social com a retirada dos direitos conquistados nos últimos 100 anos e esvaziamento democrático mediante a aterrizagem da doutrina única, liberal e individualista. O segundo momento é de reconstituir e ampliar direitos da sociedade, assumir controles do excedente econômico, expandir a geração da riqueza com sua distribuição. Essas demandas sociais surgem a partir de 1995 e são de caráter democrático-social, no sentido marxista do termo. Ainda não foram atendidas plenamente, como é o tema da terra, entretanto, elas já abriram espaço para demandas mais radicais, mais comunistas, que ainda são incipientes, parciais e fragmentadas. Veja a experiência argentina com a tomada de fábricas, as experiências no Brasil, na Venezuela, as empresas sociais na Bolívia, criadas no nosso governo, reivindicadas pelo povo, ou a potencialização dada às estruturas comunitárias, para buscar um desenvolvimento diferente à economia de escala, com tecnologias alternativas, articulações de produção. Todas elas avançam, têm a experiência de gestão e regridem. Aqui na Bolívia, com a questão da água: existia uma experiência falida [privatização da água em Cochabamba], defende-se a socialização do controle da água, implanta-se outra gestão e, em seguida, ela retrocede. Ou seja, essas potencialidades comunistas da sociedade – porque não há comunismo que não venha da sociedade, não há comunismo de decreto, não há socialismo de Estado, isso é sem sentido – têm ainda uma força muito dispersa, uma presença embrionária, não conseguem coagular, mas estão latentes. Seguindo essa leitura, hoje, em 2009, não estamos diante de uma perspectiva de superação do capitalismo. Dizer outra coisa é nos enganar. Mas emergiram ações da sociedade que apontam para o socialismo, construído pelas próprias classes trabalhadoras. Existem sinais, sementes, aflorações, mas ainda não constituem a razão dominante da sociedade.


E quanto isso amadurecerá?

Em dez, 20 anos? Não se pode definir. O que pode fazer o revolucionário é, a cada sinal de socialismo – como a reapropriação, por parte dos produtores, de sua própria produção com democratização e socialização da tomada de decisões –, reforçá-lo para que se expanda. O dever do comunista é meter-se de cabeça a cada abertura, não inventar o comunismo. O comunismo é a capacidade real do povo de produzir e se associar. Eu tenho a leitura de Marx, ao avaliar a Segunda Revolução Industrial, em 1850, que dizia que serão necessárias dezenas, milhares de lutas, de fracassos, de pequenas vitórias, depois novamente fracassos, para que, da própria experiência da classe trabalhadora, surja a necessidade de associar-se para tomar o controle da produção. E isso é uma visão muito, mas muito otimista do ciclo que está emergindo.


E que importância tem a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e a Unasul (União das Nações Sul-americanas) neste cenário latino-americano e como o senhor vê os movimentos sociais nesse processo de integração?

A Unasul é um projeto continental, fruto da surpreendente simultaneidade de governos progressistas em boa parte do continente. Além da luta, estamos discutindo em termos de estrutura, de matéria, de economia, de sociedade, de cultura, de legislação... um grande salto. A esquerda não refletia sobre isso antes e isso é mudar nosso “chip”. Ainda não se escreveu sobre esse tema que, inevitavelmente, tem que entrar no discurso de esquerda. Ele segue sendo assunto dos funcionários das Chancelarias tradicionais, mas não é uma construção desses dinossauros. É uma construção de governantes progressistas que não tem o acompanhamento do intelecto social progressista, que está aí atônito, vendo, pasmo, esse novo ciclo. Tal projeto de integração tem que tomar em conta a unanimidade dos critérios de cada país, sendo um processo lento, estrutural. A perspectiva é boa, mas a velocidade é lenta, como tem que ser um bom processo de integração, não há que se desesperar. A União Européia está aí há pelo menos 30 anos e ainda está se construindo. Construir Estados-continente é complexíssimo, mas esse é o rumo do mundo no século 21, isso é o que vai contar no movimento de tomada de decisões econômicas.


E a Alba?

É diferente, porque é uma iniciativa de governos progressistas muito mais afins, o que permite maior velocidade em relação à Unasul. Tanto Mercosul como Alba deveriam dissolver-se no interior da Unasul, mas isso vai demorar décadas. Alba e Mercosul são estruturas de ação imediata. Vão assumir um conjunto de tarefas mais rapidamente e mais efetivamente. A Alba está articulando várias coisas ligadas à economia, usando regras que, pela afinidade política, não podem ser tomadas em outro cenário, levando adiante articulações e arranjos econômicos não baseados historicamente em relações de mercado. Ainda muito incipiente, mas, no caso de Bolívia e Venezuela, há um conjunto de atividades econômicas que já não estão necessariamente reguladas pelo mercado. Tem como parâmetro máximo o mercado, mas tentam construir intercâmbios comerciais a partir de outros critérios. São esforços audazes de complementaridade, como acontecem com os setores têxteis, do petróleo e da soja. A Venezuela tem relações parecidas com Cuba e Nicarágua. Não é retórica falar de processos crescentes de busca de outros mecanismos de integração não baseados em regulações de mercado. O recente passo do Sucre [sistema monetário comum da Alba], como um mecanismo de pagamentos entre os países, pode ser um novo piso nessa construção de algo muito novo, que não há em nenhuma outra parte do mundo. Outro passo são as empresas gran-nacionais, pertencentes aos Estados, que darão um olhar de gestão da economia de maneira regionalizada e unicamente organizada entre os países. Creio que a Bolívia vai dar esse primeiro passo da empresa gran-nacional com a Venezuela em um prazo muito curto. As condições materiais estão dadas.


E qual papel jogam os movimentos sociais nesse processo de integração?

Creio que a articulação deles em nível continental e sua participação nesses processos de integração é ainda muito incipiente. O neoliberalismo fragmentou tudo e reduziu as articulações a uma união via ONGs. Não era uma articulação autônoma. Hoje começa haver um encontro cara-a-cara de companheiros que se convidam, mas ainda avançaram pouco. Temos que ir além dos fóruns, que foram importantes nos anos 1990 para juntar 1990, rompendo as suscetibilidades de direções e de hegemonias, mas muito débeis, frouxos em seus discursos. A tomada de ações vinculantes não foi feita por nenhum dos fóruns. As pessoas retornavam para suas casas para arrumar seus papéis para convocar outro fórum. Necessitamos de uma estrutura bolchevique, que o MST tem, do movimento social. Isso tem que vir deles, não dos governos. Ainda não se criou uma plataforma continental dos movimentos sociais. Sei que isso é complexíssimo. Digamos que nem ao nível de países isso se dá, porque isso acontece em momentos espetaculares. A pauta de nacionalizações, por exemplo, dá lugar a revoluções. Mas precisamos desse esforço de nos olharmos como continente, não somente acompanharmos as ações dos presidentes. Quando há reunião da Alba, os movimentos sociais se reúnem e debatem temas complementares aos dos presidentes, melhor ainda quando os temas debatidos entre presidentes foram previamente discutidos com lideranças. Mas é necessário ir além. É dificílimo, mas talvez seja hora de projetar uma internacional continental de movimentos sociais, uma estrutura como uma internacional comunista, mas de movimentos sociais, continental e depois pensar em ir para o mundo. Diante da possibilidade de que em algum país de nosso continente a direita retome o governo, como eles não vão pautar uma mobilização? Ao fim e ao cabo, se essa leva progressista for para trás, quem mais sofrerá serão os movimentos. Eles estão obrigados a pensar continentalmente e devem defender e empurrar mais para lá esses processos. O século 21 exige novos compromissos, maiores ações e a melhor experiência a ser resgatada está nas reflexões de Marx sobre a Primeira Internacional, onde se juntaram partidos, sindicatos, agremiações, marxistas, anarquistas, socialistas... articulavam-se continentalmente com debilidade, mas com firmeza e vinculação de suas decisões. É melhor do que a Internacional leninista, e talvez a melhor referência para uma Internacional hoje não seja bolchevique, mas a comunista de Marx em seu debate fascinante com Bakunin [Mikhail Bakunin, um dos intelectuais fundadores do anarquismo]. Como se toma as decisões? É pela autoridade moral das organizações, dizia. Não se obriga a ninguém, mas todos estão comprometidos a cumprir o que decidiram. Precisamos de um novo passo já nessa década: uma internacional de movimentos sociais com maior capacidade de vinculação em suas decisões, de mobilização desde os países e com uma agenda comum debatida continentalmente por eles para defender esse processo, para controlá-lo e radicalizá-lo.


Seria necessário um ponta de lança para isso?

Modéstia à parte, creio que a Bolívia é a experiência mais avançada de movimentos sociais.


Mais do que o Brasil?

Sim. É um país menor, evidentemente, com menos gente. Mas a eficácia política-estatal do movimento é a mais radical no continente.


Essa é a originalidade do processo boliviano?

Acho que sim. Tudo isso aqui é movimento social.


No Estado?

No Estado, por fora do Estado, por baixo do Estado, por cima do Estado. Essa é uma grande discussão, temos que fazê-la. Nos causou muito dano o debate de John Holloway [do livro “Mudar o mundo sem tomar o poder”] e Marcos del Rojo, não? Eu tenho profundas discordâncias, mas respeito os companheiros. Mas tem que haver uma aliança de movimentos sociais continentais fortes que sejam os articuladores. Tem que haver uns quatro, cinco ou seis que se lancem, de maneira muito respeitosa, com democracia de base, e que articulem o debate com os demais, mas alguém tem que dar o primeiro passo, e logo.



Esse seria o sujeito revolucionário na América Latina?

O sujeito revolucionário é o que faz a revolução. Não há uma predestinação para definir quem será, esse foi o grande erro do debate ocioso da esquerda, desde antes dos anos 1950. Diziam ”esse é o que vai fazer a revolução” e seguiam esperando que o sujeito se movesse, mas ele estava em outra. Paranóico, não? O que está claro é que o sujeito revolucionário vem do mundo do trabalho sob a forma de camponês, de comunário, de indígena, de operário, de jovem, de intelectual, de integrante de associações de bairros. Isso não contradiz as reflexões de Marx, segue sendo o mundo trabalho, que se complexificou infinitamente frente ao que ele conheceu. Dependendo de qual desses espaços do mundo do trabalho assume maior protagonismo, o processo tenderá a visualizar um aspecto em detrimento de outros. Se é o mundo indígena e camponês, se visibilizará o tema da terra, da biodiversidade, e não o salarial. Em seu momento voltará a emergir o mundo do trabalho sob sua forma salarial, daqui a alguns anos, porque estamos em um processo de reconstrução do mundo salarial no continente e sua formação e estabilização vai requerer décadas. Ou se é mais do tipo de bairro, se visualizará o tema de necessidades básicas... mas são trabalhadores, como aconteceu em Cochabamba. Quem fez a Guerra da Água eram trabalhadores, mas não se moviam como sindicato de trabalhadores, se moviam como moradores. Mover-se como trabalhadores era ser demitido da fábrica. Canalizaram sua expectativa de outra forma. Não há que esperar que o operário da fábrica se una em sindicato para falar do protagonismo do mundo laboral. Ele se move de múltiplas formas, veja os sem-terra. No caso do Brasil, está claro que na medida em que há uma recomposição da produção – o Brasil, agora, como México, Filipinas, Coreia e outros seis ou sete lugares, é a oficina de produção do mundo – não haverá eficácia político-estatal do movimento social sem protagonismo forte desse mundo assalariado. Existe o Movimento Sem Terra, com linhas revolucionárias muito fortes – o que é excelente –, que assume a aposta de manter a presença da sociedade na construção de alternativas. Mas pensar um projeto de radicalização aí é também pensar em seu mundo trabalhador. Se o movimento operário não acompanhar o MST, daqui a uma década o que ele vai poder fazer, frente à necessidade que se requer semelhante potência mundial, será pouco.


E no caso da Bolívia?

Aqui, esse mundo do trabalho tem como liderança o movimento camponês-indígena, ainda que o país tenha tido alguns processos de assalariamento muito interessantes. São trabalhadores, criadores de riquezas, que têm estruturas locais associativas, formas de gestão comum da terra, trabalho individualizado, vínculos parciais com o mercado, vínculos não de mercado; e têm o protagonismo. Mas, aí no meio, estão também outros mundos laborais, assalariados, não-assalariados, que se mobilizam, mas com menor intensidade e maior dificuldade. Porém, se não conseguir avançar mais, será porque o movimento operário ainda não conseguiu mobilizar-se. Se esse mar de operários, daqui a cinco, dez ou 20 anos, não conseguir se unificar com identidade e ação coletiva, o movimento atual encontrará um limite. A chave vão ser esses dois braços, até que se reorganize o movimento da classe trabalhadora, que se rearticule diante da recomposição territorial da força de trabalho planetária.


Porém, muito se fala que não é possível entender o processo boliviano com um olhar tradicional de esquerda, com uma formação ocidental. Quais seriam essas limitações?

Não devem se meter com assessores ou algumas ONGs que os assessoram, aí está esse tipo de discurso que tem a ver com uma espécie de moda. Na central de trabalhadores camponeses, nas comunidades ou no movimento indígena em seus níveis intermediários e de base, não há esse debate falso. Muitos dos que seguem essa linha ajudam muito com seu trabalho, mas são parte de uma espécie de ressaca. Antes estavam envolvidos com uma esquerda tradicional e aderiram recentemente ao mundo indígena, o que os levou a radicalizar seus pontos de vista ostentosamente. Entende-se esse tipo de reação na medida em que, durante muito tempo, a esquerda tradicional aqui desdenhou o movimento indígena, os acusou de querer voltar a tempos arcaicos ou chamou-os de pequenos burgueses, resposta clássica dessa esquerda. Então, uma inteligência indígena se formou nos anos 1970, 1980 e 1990, como a figura de Fausto Reinaga, em rechaço a essa leitura bem primitiva. Essa inteligência se formou em batalhas contra a direita e também contra a esquerda, que repetia processos de discriminação, que dizia que a revolução era dos operários. Os camponeses eram a massa de apoio que levaria os operários nos ombros. Em cima deles, iriam os intelectuais, não era assim? Então, parte de uns convertidos recentes segue pensando nisso. Agora, no governo, nos debates da federação de camponeses ou na dos cocaleiros, há um processo rico dessa vertente camponesa-agrária-indígena com um novo marxismo. Nós lutamos por isso por mais de 20 anos. Eu briguei com todos os esquerdistas. Os primeiros textos que escrevi há 30 anos foram para brigar com trotskistas, stalinistas, maoístas, e todos me qualificaram de revisionista, de ignorante. Buscávamos um encontro entre marxismo e indianismo e acho que foi frutífero. Reivindico minha vertente marxista, às vezes me reivindico indianista, ainda que não seja indígena, e daí?


Como se encontraram essas vertentes?

O indianismo teve a grande virtude de denunciar a colonialidade do Estado – e não poderia vir de outros que não eles –, mas era impotente na questão do poder. Diziam “todos eram índios” e temos “que indianizar o Estado”. Muito bem, e como se faria isso? O seu discurso era denunciativo, mobilizador, mas somente denunciativo. A vertente marxista pautava o tema do poder, mas com suas incompreensões, o fazia à margem do movimento indígena, portanto, era um tema de elites. Assim, era impossível definir uma estratégia discursiva e de alianças que permitisse o acesso ao poder. Mas, no fim do século 20, indianismo e marxismo se fundem.


Essa é a originalidade do processo boliviano?

Em termos de discurso e de criação teórica-intelectual, sim. Isso permitiu criar um cenário de estratégia. Em termos de ação política, é a grande mobilização de massas: sublevações, bloqueios, marchas, levantamentos, insurreições.


E esse discurso tem muita distância com o discurso que há hoje?

Não, de jeito nenhum. Vou contar o que aconteceu com o Evo, quando iniciamos o programa Juancito Pinto [que dá bolsa aos estudantes do ensino fundamental], em 2006. Fomos entregá-lo no norte de Potosí [departamento no oeste boliviano]. Um jovem do campo se aproximou e perguntamos: “Como está? Em que série está?”. “Estou no terceiro básico, tenho oito anos”, disse. “E o que você fez com o seu bônus?”, perguntamos. “Estou guardando para me preparar para ser presidente como você”. Ah, por favor... É a melhor resposta que poderia dar. Quando um indígena coloca como possibilidade de vida ser governante, o tema do poder se converte em um feito próprio, porque era uma questão de submissão! O poder era de poucos brancos e formados, e agora um camponês do norte de Potosí, a zona mais pobre do país, dizia “eu também posso ser presidente”. Temos aí uma revolução cultural.


Há um simbolismo forte aí, mas até que ponto as bases realmente estão discutindo as transformações políticas? Qual é a proximidade das bases e da intelectualidade?

São espaços diferentes. Há o mundo da academia, que recebe para pensar 24 horas, e o mundo da vida laboral, associativa, sindical, do movimento camponês. Espaços diferentes que possuem canais de comunicação e distintas linguagens. No tema das alianças: a academia pode falar de bloco de poder, pode usar Gramsci, enquanto do outro lado a discussão é apoiar ou não os moradores desse bairro, se apoiamos ou não alguma candidatura. É o mesmo tema verbalizado de distintas maneiras. As mesmas preocupações da base são levadas para a academia e, na academia, de tudo que se reflete, poucas coisas são debate nas bases. Mas existem momentos em que eles se aproximam mais, criando um espaço de intervenção maior; e aí são os grandes ascensos. Quando a reflexão dessa intelectualidade progressista é o debate das assembleias. Quando o que surge em um jornal, em algum panfleto, em algum discurso, rapidamente é retomado pelos níveis dirigentes e levado à base. Essa é a dinâmica. É impossível isso ser permanente, porque são espaços diferentes no tempo e na forma de vida. Creio que em nenhuma parte isso se deu. A imagem que temos dos sovietes e do Partido Bolchevique está um pouco idealizada. O fato de que nas fábricas os operários liam Lênin não era verdade. Pensar essa fusão do espaço intelectual com o movimento social é impossível. Existem aí vasos comunicantes fluidos que levaram, inclusive, o âmbito intelectual a mudar em dez anos. O que debatiam os intelectuais antes? Governabilidade e coisas assim. Hoje debatem na universidade pública, e até nas privadas, a nova Constituição. Mesmo os setores conservadores têm que refletir sobre os fatos, tem que saber como o Direito Penal vai estar vinculado com a Nova Constituição. Hoje existem vasos comunicantes. Em certos momentos são rios comunicantes, ou fusões parciais, e logo separações, como em qualquer processo de transformação; outra vez. por ondas. Nada é definitivo, perpétuo ou já dado. A ideia de revolução permanente não é tão certa. Estes oito anos intensos na Bolívia demonstram essa dinâmica de ondas que falava Marx, mais do que o linear que nos dizia Trotski.


E como você avalia o protagonismo das mulheres na Bolívia?

O que está claro é que as mulheres têm uma forte presença no movimento indígena aqui, fazendo-se respeitar gradualmente com muitas dificuldades porque o movimento tem estruturas machistas. O presidente Evo, a cada dia, está recordando e convocando as mulheres a romper essas muralhas. Mas é onde mais se desenvolveu sua presença, mesmo que ainda lhe falte muito. E, no caso da classe trabalhadora, a metade da força de trabalho é mulher, jovem, mas o sindicalismo ainda é velho. Não dá espaço a elas, não as reconhecem e as mulheres preferem mover-se como estudantes, integrantes de associações de bairro ou donas de casa, ainda não como trabalhadoras. Vai ser necessário um grande processo em que se modifique o sindicato herdado, uma estrutura hierarquizada por gênero. Só um sindicato que modifique a questão dos horários, dos discursos, porque esses são mecanismos que anulam as mulheres, vai permitir reorganizar esse novo mundo do trabalhador jovem, feminizado pela presença de mulheres. O sindicato precisa ser apoiado por muitas partes para tomar outra modalidade organizativa e, sem mulheres, não vai haver movimento sindical, porque o velho movimento sindical masculinizado desapareceu.



Desapareceu?

Não no sindicato. Mas a condição masculina para ser trabalhador desapareceu e o sindicato que se construiu no século 20 correspondia a essa condição. Por isso, ele não dialoga com essa nova condição operária. As práticas, o discurso, o saber, a dinâmica desse novo mundo trabalhador, jovem e com muitas mulheres, não entra nas estruturas masculinizadas. Precisamos de novas estruturas e isso vai tardar 20 anos. Há que se ver a história a longo prazo, temos um mundo por ganhar neste século.



E o movimento estudantil na Bolívia hoje?

Não há movimento estudantil hoje. Existiu nos anos 1970, assumindo a liderança nas marchas, mobilizações, no debate público, na construção de assembleísmo, de democracia radical de base, de vinculação com as lutas populares. O momento culminante foi em 1983 e 1984. Mas há que se estudar a modificação da composição social dos universitários. Creio que isso é em todo o continente. Nos anos 1970 e 1980, a universidade pública estava composta por estudantes de classe média e média-alta. Pessoas que tinham certa estabilidade econômica, que não estavam buscando um ascenso social, senão uma estabilização e uma continuidade de sua condição. Portanto, tinham mais tempo para os estudos, para a mobilização e, em seu objetivo geracional, não havia competição por ascenso social. Nos anos 1980, começa s ampliação dos setores populares nas universidades. Em 1980, eram 60 mil estudantes em universidades públicas da Bolívia, no ano 2000, já eram 300 mil. A incorporação dessas classes populares traz consigo a ilusão do ascenso social via educação. Uma ilusão, mas uma ilusão bem fundada. Então, esses estudantes entram com outra vontade: não estão ali para ver o tempo passar, não vêm para consolidar sua condição social, vêm para buscar a ascensão. Seu ser social na universidade tem outra intencionalidade. Então, não tem tempo para assembleia, porque têm que trabalhar e estudar. Alguns demoram uma hora caminhando desde El Alto, depois têm que ir de novo a trabalhar, têm que cuidar dos filhos, dar atenção à família, não há processo de nucleamento dentro da universidade. Não estão aí para reclamar maior democracia no âmbito universitário. A eles, interessa o diploma o mais rápido possível. Porque precisa disso para o seguinte passo. Na década de 1970, eram outras expectativas materiais. Hoje, eles querem reconhecimento profissional e classista que lhes permita passar à outra classe.


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Nascido em Cochabamba, em 1962, Álvaro García Linera é formado em matemática na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e sociólogo autodidata. Ao regressar de seus estudos, começa sua militância na Bolívia, vinculado às Células Mineiras de Base, grupo que se funde aos Ayllus Rojos nas atividades de propaganda e organização de comunidades do altiplano. Posteriormente, ingressa no Exército Guerrilheiro Túpac Katari (EGTK) – uma das poucas forças guerrilheiras propriamente indígenas da América Latina –, onde é destacado para atuar com formação política e pesquisa de comunidades indígenas. Em 1992, é preso, acusado de sublevação e levantamento armado, ficando encarcerado por cinco anos, tempo em que escreve uma de suas principais obras, o livro “Forma valor e forma comunidade”. Ao ser libertado, é convidado para ser professor do curso de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), a universidade pública de La Paz. Em 2006, assume a vice-presidência, ao lado do presidente Evo Morales, pelo Movimento ao Socialismo (MAS).

Muros, mortos e mentiras


“«O adeus ao comunismo? Provocou um milhão de mortos». O título não é duma publicação comunista. É dum jornal do grande capital italiano, o Corriere della Sera (9.11.09), que noticia um estudo de professores de Oxford e Cambridge, publicado na conceituada revista médica britânica The Lancet”.

Jorge Cadima* - 22.11.09

«O adeus ao comunismo? Provocou um milhão de mortos». O título não é duma publicação comunista. É dum jornal do grande capital italiano, o Corriere della Sera (9.11.09), que noticia um estudo de professores de Oxford e Cambridge, publicado na conceituada revista médica britânica The Lancet. «Baseados nos dados da Unicef, de 1989 a 2002» os autores afirmam que «as políticas de privatização em massa nos países da União Soviética e na Europa de Leste aumentaram a mortalidade em 12,8% […] ou seja, causaram a morte prematura a um milhão de pessoas».

Morreu-se mais lá onde se adoptaram as “terapias de choque”: na Rússia, entre 1991 e 1994, a esperança de vida diminuiu em 5 anos». Conclusões de estudos anteriores foram ainda mais gravosas. Como escreve o Corriere della Sera, «A agência da ONU para o desenvolvimento, a UNDP, em 1999 contabilizou em 10 milhões as pessoas desaparecidas na telúrica mudança de regime, e a própria UNICEF falou em mais de 3 milhões de vítimas». Foi para celebrar estes magníficos resultados que o estado-maior do imperialismo se reuniu em Berlim, com pompa, circunstância e transmissões televisivas infindáveis, numa comemoração de regime dos 20 anos da contra-revolução a Leste.

O balanço da restauração do capitalismo é ainda mais grave. Mesmo sem falar no sofrimento dos vivos a Leste – o alastrar de pobreza extrema, dos sem-abrigo, da prostituição, da toxico-dependência ou a emigração em massa para sobreviver – os efeitos das contra-revoluções de 1989-91 fizeram-se sentir em todo o planeta. As «terapias de choque» dum imperialismo triunfante e ávido de reconquistar as posições perdidas ao longo do Século XX tornaram-se uma mortífera realidade global, e tiveram em 2008 o seu corolário inevitável: a maior crise do capitalismo desde os anos 30. Uma escalada de mortíferas guerras foram ao mesmo tempo desencadeadas pelo imperialismo, liberto do contrapeso dos países socialistas. Muitas centenas de milhares de mortos (mais de 650 mil só no Iraque, segundo outro estudo publicado em 2006 na Lancet) são o fruto «da queda do Muro» no Golfo, na Jugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, na Palestina, e agora no Paquistão – para não falar das agressões «menores».

E foram acompanhadas pelo «Gulag» de prisões secretas dos EUA espalhadas por todo o mundo, no qual desaparecem milhares de pessoas raptadas e torturadas por um sistema de repressão acima de qualquer controlo. Os dirigentes do «mundo livre» que se juntaram, ufanos, em Berlim, são todos responsáveis por este banho de sangue e repressão. Podem mostrar-se de cara simpática e tratarem-se amigavelmente por Hillary, Angela, Nicolas, Bill, Tony ou «porreiro, pá». Mas das suas mãos escorre o sangue e sofrimento de milhões de pessoas em todo o planeta – de Peshawar a Guantanamo (que continua aberta), de Abu Ghraib às Honduras (que continua sob controlo dos golpistas e a indiferença da comunicação social «democrática»), das «maquiladoras» mexicanas aos campos de refugiados palestinos (que continuam – há 60 anos – à espera do seu Estado).

Pelo «Gulag» democrático-ocidental passou Khalid Shaikh Mohammed, que vai agora a julgamento nos EUA, acusado de ser o responsável primeiro do 11 de Setembro (mas não era o Bin Laden?). Segundo o New York Times (15.11.09) «foi submetido 183 vezes à técnica de quase afogamento chamada 'waterboarding'». O jornal afirma que ele também se diz responsável «por uma série de conspirações» como «tentativas de assassinato do Presidente Bill Clinton, do Papa João Paulo II e as bombas de 1993 no World Trade Center».

Mais um afogamento simulado e confessaria também ser responsável pelo aquecimento global e o sumiço de D.Sebastião em Alcácer-Quibir. Mas atente-se na vida do acusado: paquistanês, criado no Kuwait e diplomado por uma universidade americana viajou, após os estudos «para o Paquistão e o Afeganistão, a fim de se juntar aos combatentes mujahedines que, nessa altura, recebiam milhões de dólares da CIA para lutar contra as tropas soviéticas» (NYT, 15.11.09). Afeganistão hoje ocupado e onde «segundo responsáveis da NATO […] um terço dos polícias afegãos são toxicodependentes» (Sunday Times, 8.11.09). Admirável mundo novo que a «queda do Muro» pariu!


Jorge Cadima é Professor universitário e analista de política internacional

Avante nº 1.877 de 19 de Novembro de 2009

ttp://www.odiario.info/b2lhart_imp.php?p=1380&more=1&c=1

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A resistência diz um não categórico às eleições-farsa de 29/Novembro

A Frente Nacional de Resistência contra o Golpe de Estado comunica à população hondurenha e à comunidade internacional:

1. Ao haver vencido o prazo estabelecido para quinta-feira 5 de Novembro às 12 da noite sem haver sido restituído o presidente legítimo Manuel Zelaya Rosales, declaramos nosso desconhecimento activo do processo eleitoral de 29 de Novembro deste ano.

Eleições promovidas por um regime de facto que reprime e atropela os direitos humanos e políticos dos cidadãos e cidadãs seriam só uma forma de validação da ditadura da oligarquia a nível nacional e internacional, e um método para assegurar a continuação de um sistema que marginaliza e explora os sectores populares para garantir os privilégios de uns poucos.

A participação em tal processo daria legitimidade ao regime golpista ou ao seu sucessor que se instalasse fraudulentamente a 27 de Janeiro de 2010.

2. O desconhecimento da farsa eleitoral manter-se-á firme ainda que durante o período compreendido entre o dia de hoje e o dia 29 de Novembro fosse restituído no seu cargo o Presidente Manuel Zelaya, uma vez que 20 dias ou menos é um lapso muito curto para desmontar a fraude eleitoral que se forjou para assegurar que um dos representantes da oligarquia golpista seja imposto para dar continuidade ao seu projecto anti-democrático e repressor.

O que antecede não significa que renunciámos à nossa exigência fundamental de devolver a Honduras a ordem institucional, que inclui o retorno do presidente Zelaya ao cargo para o qual foi eleito pelo povo hondurenho por quatro anos.

3. Hoje, mais do que nunca, demonstra-se que o exercício da democracia participativa através da instalação da Assembleia Nacional Constituinte não só é um direito inegociável como a única via para dotar a população hondurenha de um sistema político democrático e includente.

4. Denunciamos a atitude cúmplice do governo dos Estados Unidos, que manobrou para dilatar a crise e agora mostra a sua verdadeira intenção de validar o regime golpista e assegurar que o governo seguinte seja dócil aos interesses das companhias transnacionais e seu projecto de controle regional. Por isso, consideramos correcta a decisão do Presidente Manuel Zelaya de declarar fracassado o Acordo de Tegucigalpa que faz parte da estratégia norte-americana de dilatar a sua restituição para validar o processo eleitoral.

5. Fazemos um apelo às organizações e candidaturas políticas que se postulam para o 29 de Novembro a que mostrem uma atitude consequente com os compromissos assumidos anteriormente e se retirem publicamente da farsa eleitoral.

6. Convocamos a população organizada e não organizada a somar-se às acções de repúdio à farsa eleitoral e a promover as acções de desobediência civil que realizaremos amparando-nos no artigo 3 da Constituição da República que nos dá direito à desobediência e à insurreição popular.

7. Aos governos e povos irmãos do mundo apelamos a que mantenham a pressão política para derrotar a ditadura militar imposta pela oligarquia e o imperialismo, assim como a desconhecer as falsas eleições de 29 de Novembro e as autoridades espúrias que pretendam apresentar-se como representantes eleitos pelo povo.

RESISTIMOS E VENCEREMOS

Tegucigalpa, 9 de Novembro de 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

CARTA DE ANITA LEOCÁDIA PRESTES AO PRESIDENTE LULA

Exmo. Sr. Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva.

Na qualidade de filha de Olga Benário Prestes, extraditada pelo Governo Vargas para a Alemanha nazista, para ser sacrificada numa câmera de gás, sinto-me no dever de subscrever a carta escrita pelo Sr. Carlos Lungarzo, da Anistia Internacional, na certeza de que seu compromisso com a defesa dos direitos humanos não permitirá que seja cometido pelo Brasil o crime de entregar Cesare Battisti a um destino semelhante ao vivido por minha mãe e minha família.

Atenciosamente,
Anita Leocádia Prestes

Saudação ao Povo Negro

(Nota Política do PCB)

O Partido Comunista Brasileiro associa-se às celebrações pela passagem do Dia da Consciência Negra.

O comprometimento de nosso partido para com as lutas pela valorização do povo negro brasileiro vem de longa data. Já em julho de 1930, denunciávamos a persistência de elementos de escravidão na situação real experimentada pelos negros do país, não obstante a tão propalada Abolição da Escravatura. Neste mesmo ano, nas eleições presidenciais, apresentamos ao povo a candidatura de Minervino de Oliveira, militante de nosso partido, que se tornou então o primeiro negro e o primeiro operário a disputar a presidência da república.

Em nossa Primeira Conferência Nacional de julho de 1934, realizada na mesma época em que se iniciava a propagação da tese da “democracia racial brasileira”, denunciávamos o racismo das classes dominantes e nos comprometíamos a apoiar todas as lutas pela igualdade de direitos econômicos, políticos e sociais de negros e índios.

Ainda em meados da década de 30, o intelectual comunista baiano Edison Carneiro iniciava uma vasta e significativa obra de investigação e resgate da cultura afro-brasileira, tornando-se um dos pioneiros em tal campo de estudos e uma referência fundamental até os dias de hoje. Este mesmo Edison Carneiro, com o apoio de outros intelectuais comunistas como Jorge Amado e Aydano do Couto Ferraz, criava, no ano de 1937, a União de Seitas Afro-Brasileiras, a primeira entidade criada no país com o objetivo de proteger e cultivar os valores e as tradições religiosas de matriz africana.

Na década de 1940, o PCB solidificou seu engajamento na luta contra o racismo e em defesa da cultura afro-brasileira. Sob sua legenda elegeu-se, em 1945, Claudino José da Silva, primeiro negro a exercer mandato parlamentar e primeiro constituinte negro da história do Brasil. Durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte de 1946, coube ao escritor e deputado comunista Jorge Amado a elaboração do projeto da primeira lei federal que estabeleceu a liberdade para a prática das religiões afro-brasileiras. Este período registra também a criação do Teatro Experimental do Negro, que tem como um de seus principais expoentes o ator, poeta e teatrólogo comunista Francisco Solano Trindade, que marcaria com sua atividade intensa a arte popular brasileira das décadas seguintes. Alguns anos mais tarde, apareceram os primeiros trabalhos de Clóvis Moura, então vinculado ao PCB, cuja contribuição aportaria uma importante contribuição aos estudos históricos e sociológicos sobre o negro no Brasil.

Se no passado nós comunistas estivemos presentes em praticamente todos os momentos relevantes da trajetória do povo negro brasileiro, no presente continuamos a apoiar e nos envolver com essas lutas. Apoiamos as reivindicações imediatas e conquistas parciais do movimento negro brasileiro, como o acesso ao ensino público e gratuito de qualidade, o estabelecimento de reservas de vagas das universidades públicas, a titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos e o Estatuto da Igualdade Racial. No entanto, compreendemos que nenhuma destas conquistas parciais estará assegurada no futuro enquanto perdurarem: a) o esvaziamento e sucateamento das universidades públicas, a privatização e a mercantilização do ensino; b) o controle do Estado pelos grandes proprietários fundiários e a subordinação da política agrária do governo aos interesses do agro-negócio; c) a hegemonia dos interesses do grande capital nacional e internacional no interior da sociedade brasileira e a subordinação das necessidades do povo à lógica da acumulação capitalista.

Para que as atuais conquistas sejam mantidas e aprofundadas e para que novas sejam alcançadas é essencial que as lutas do povo negro, sem prescindir de sua especificidade, estejam combinadas às lutas gerais do povo e dos trabalhadores brasileiros. É necessário somar esforços aos movimentos em defesa de uma universidade pública gratuita e de qualidade, voltada para a resolução dos problemas nacionais e para a promoção social das classes populares, apoiar as ações contra o monopólio da propriedade da terra pelos grupos latifundiários e por uma reforma agrária ampla e radical, mobilizar-se enfim, por um poder político que seja a encarnação da vontade de negros e negras, trabalhadores das cidades e dos campos, pequenos proprietários urbanos e rurais, artistas e intelectuais avançados.

Salve o Dia da Consciência Negra!

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB)

20 de novembro de 2009

TODA SOLIDARIEDADE A CESARE BATTISTI. NÃO À EXTRADIÇÃO!

(Nota Política do PCB)

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) vem a público reafirmar sua plena solidariedade para com o cidadão italiano Cesare Battisti, seriamente ameaçado de ser extraditado para a Itália, onde o governo neofascista de Berlusconi, mesmo sem qualquer prova, transformou-o em símbolo de uma pretensa campanha “contra o terrorismo”, em ação orquestrada com a mídia burguesa internacional, que busca a todo momento criminalizar aqueles que se dedicaram – e continuam a fazê-lo mundo afora – a lutar contra as injustiças e desigualdades promovidas pelo capitalismo.

A ameaça da extradição se verifica com o voto de minerva a ser dado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, na próxima quarta-feira, dia 18 de novembro, tendo em vista o caminho adotado pelo órgão máximo da Justiça no Brasil, que resolveu entrar no mérito da questão, ao invés de reconhecer a competência do governo federal para tratar de assuntos inerentes às relações internacionais. Esta postura acabou contrariando a decisão anterior tomada pelo Ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder asilo político ao militante comunista italiano.

Para as forças de esquerda em todo o mundo, a situação é muito preocupante, por duas razões: em primeiro lugar, são mais do que conhecidas as posições ultraconservadoras do Ministro Gilmar Mendes, que já declarou publicamente sua opinião em favor da extradição. Em segundo lugar, a viagem de Lula à Itália, a quarenta e oito horas da decisão do STF, é um sinal de que a cabeça de Battisti pode estar a prêmio. Lula encontrou-se com o líder da oposição e deputado do Partido Democrático, Massimo D'Alema, o qual, coerente com a prática de um partido que, na década de 1990, abandonou o programa socialista e rendeu-se à lógica do capitalismo, faz parte do lobby que pede a extradição do “ex-guerrilheiro”, de quem afirma ter sido condenado por “graves crimes, não por razões políticas". Lula também foi recebido pelo primeiro ministro Berlusconi, líder da direita italiana. Após o encontro, disse, referindo-se ao parecer do STF: "Não existe possibilidade de seguir ou ser contra. Se a decisão foi determinativa, não se discute: cumpre-se".

Caso seja extraditado, Battisti será condenado à prisão perpétua na Itália. Trata-se de uma condenação sem provas: ele foi indiciado em crimes de assassinato a partir das acusações feitas por um ex-companheiro da organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), Pietro Mutti, que se valeu de um recurso jurídico italiano, conhecido como “delação premiada”, em troca da liberdade e de uma nova identidade. Battisti é acusado de haver cometido dois crimes, ocorridos em duas cidades distantes uma da outra, no mesmo dia e apenas com meia hora de diferença entre eles, um em Milão e outro na cidade de Udine. Além disso, Battisti foi julgado em sua ausência e teve sua assinatura falsificada, para que o governo pudesse nomear advogados que aceitaram participar de um julgamento sem a presença do réu.

Todo o processo contra Battisti baseou-se apenas nos relatos de Mutti, existindo ainda indícios substanciais de que essas “confissões” tenham sido arrancadas sob torturas, conforme denunciou à época a Anistia Internacional. No período posterior à violenta repressão que se abateu sobre os grupos que, entre 1969 e 1980 na Itália, optaram pela luta armada em prol do socialismo, passou a prevalecer uma lei de exceção que concedia às investigações das organizações consideradas terroristas detenções de pessoas sem autorização judicial. Ou seja, sob o pretexto de combater o “terrorismo”, o Estado italiano passou a desrespeitar as mais básicas regras democráticas e os direitos humanos, reforçando as posições da ultradireita e colaborando para a progressiva criminalização da esquerda em geral e das lutas anticapitalistas. Para o avanço da onda conservadora no país, muito contribuiu a desintegração do PCI, cujos antigos membros passaram a propor a “refundação do capitalismo”, sob a máscara de uma democracia radical.

A velha direita fascista de Berlusconi e a “nova esquerda” de Massimo D'Alema transformaram o “caso Battisti” em uma questão de honra, fazendo coro com o pensamento burguês hegemônico, segundo o qual qualquer luta mais radicalizada contra os efeitos perversos do capitalismo no mundo acaba sendo confundida com crime, com “terrorismo”. Esse discurso manipulador de consciências é bem conhecido de todos nós: a burguesia brasileira, com o auxílio luxuoso da mídia capitalista, persegue e criminaliza os movimentos sociais que, a exemplo do bravo MST, lutam contra a exploração do grande capital em nosso país.

Diante deste quadro, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) conclama todos os trabalhadores, militantes de esquerda, lutadores sociais e democratas de nosso país a prestar efetiva solidariedade a Cesare Battisti, através de manifestações públicas que pressionem o Supremo Tribunal Federal e o Presidente Lula a manterem a decisão do Ministério da Justiça no sentido de conceder asilo político a Battisti.

Partido Comunista Brasileiro

Comissão Política Nacional

Novembro de 2009

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Carta aberta de Cesare Battisti a Lula e ao Povo Brasileiro

14 de Novembro de 2009

Como última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus ideais, pelas suas convicções. Vale a pena! Por Cesare Battisti


“CARTA ABERTA”
AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
SUPREMO MAGISTRADO DA NAÇÃO BRASILEIRA
AO POVO BRASILEIRO

“Trinta anos mudam muitas coisas na vida dos homens, e às vezes fazem uma vida toda”. (O homem em revolta - Albert Camus)

Se olharmos um pouco nosso passado a partir de um ponto de vista histórico, quantos entre nós, podem sinceramente dizer que nunca desejou afirmar a própria humanidade, de desenvolvê-la em todos os seus aspectos em uma ampla liberdade. Poucos. Pouquíssimos são os homens e mulheres de minha geração que não sonharam com um mundo diferente, mais justo.

Entretanto, frequentemente, por pura curiosidade ou circunstâncias, somente alguns decidiram lançar-se na luta, sacrificando a própria vida.

A minha história pessoal é notoriamente bastante conhecida para voltar de novo sobre as relações da escolha que me levou à luta armada. Apenas sei que éramos milhares, e que alguns morreram, outros estão presos, e muito exilados.

Sabíamos que podia acabar assim. Quantos foram os exemplos de revolução que faliram e que a história já nos havia revelado? Ainda assim, recomeçamos, erramos e até perdemos. Não tudo! Os sonhos continuam!

Muitas conquistas sociais que hoje os italianos estão usufruindo foram conquistadas graças ao sangue derramado por esses companheiros da utopia. Eu sou fruto desses anos 70, assim como muitos outros aqui no Brasil, inclusive muitos companheiros que hoje são responsáveis pelos destinos do povo brasileiro. Eu na verdade não perdi nada, porque não lutei por algo que podia levar comigo. Mas agora, detido aqui no Brasil não posso aceitar a humilhação de ser tratado de criminoso comum.

Por isso, frente à surpreendente obstinação de alguns ministros do STF que não querem ver o que era realmente a Itália dos anos 70, que me negam a intenção de meus atos; que fecharam os olhos frente à total falta de provas técnicas de minha culpabilidade referente aos quatro homicídios a mim atribuídos; não reconhecem a revelia do meu julgamento; a prescrição e quem sabem qual outro impedimento à extradição.

Além de tudo, é surpreendente e absurdo, que a Itália tenha me condenado por ativismo político e no Brasil alguns poucos teimam em me extraditar com base em envolvimento em crime comum. É um absurdo, principalmente por ter recebido do Governo Brasileiro a condição de refugiado, decisão à qual serei eternamente grato.

E frente ao fato das enormes dificuldades de ganhar essa batalha contra o poderoso governo italiano, o qual usou de todos os argumentos, ferramentas e armas, não me resta outra alternativa a não ser desde agora entrar em “GREVE DE FOME TOTAL”, com o objetivo de que me sejam concedidos os direitos estabelecidos no estatuto do refugiado e preso político. Espero com isso impedir, num último ato de desespero, esta extradição, que para mim equivale a uma pena de morte.

Sempre lutei pela vida, mas se é para morrer, eu estou pronto, mas, nunca pela mão dos meus carrascos. Aqui neste país, no Brasil, continuarei minha luta até o fim, e, embora cansado, jamais vou desistir de lutar pela verdade. A verdade que alguns insistem em não querer ver, e este é o pior dos cegos, aquele que não quer ver.

Findo esta carta, agradecendo aos companheiros que desde o início da minha luta jamais me abandonaram e da mesma forma agradeço àqueles que chegaram de última hora, mas, que têm a mesma importância daqueles que estão ao meu lado desde o princípio de tudo. A vocês os meus sinceros agradecimentos. E como última sugestão eu recomendo que vocês continuem lutando pelos seus ideais, pelas suas convicções. Vale a pena!

Espero que o legado daqueles que tombaram no front da batalha não fique em vão. Podemos até perder uma batalha, mas tenho convicção de que a vitória nesta guerra está reservada aos que lutam pela generosa causa da justiça e da liberdade

Cesare Battisti

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O carácter socialista da revolução brasileira

por Anita Leocádia Prestes [*]

Boa noite a todos. Em primeiro lugar eu queria agradecer ao Ivan Pinheiro e à Direção Nacional do PCB o convite para participar hoje deste debate, desta mesa sobre estratégia e tática da Revolução brasileira.

Como o tempo não é muito, vou procurar entrar imediatamente no assunto.

Em primeiro lugar, eu gostaria de sublinhar que, assim como meus antecessores nesta mesa registraram, considero o caráter da revolução brasileira – o que é a mesma coisa que a estratégia – como socialista. Por quê? Porque temos o domínio do capital, ou seja, no Brasil há tempos pode-se falar de um modo de produção capitalista. Não há dúvidas a respeito disso; em outras palavras, o modo de produção dominante no Brasil é o capitalismo, ainda que se trate de um capitalismo marcado pela dependência do imperialismo.

Parece-me que não é possível negar o caráter dependente do capitalismo brasileiro; outra coisa é estudar mais e discutir com maior profundidade as transformações pelas quais tem passado essa dependência. Imagino, pelo pouco que entendo desse tema, que as formas de dependência do capitalismo brasileiro das grandes empresas do capitalismo mundial, ou seja, das grandes potências imperialistas, muito mudou, e deve ter mudado bastante nesses últimos 20 / 30 anos. Por isso, é preciso se conhecer melhor, pesquisar essa questão.

Tenho sérias dúvidas quando se fala em sub-imperialismo brasileiro, ou imperialismo brasileiro; parece-me que a dependência ainda é muito séria e que não pode ser negada.

Um outro ponto que eu quero destacar é que a burguesia industrial brasileira nunca foi revolucionária, e hoje muito menos. Isso na história do Brasil está muito claro: a burguesia está associada em posição de dependência ao capital internacionalizado. Por mais que haja indicações de posições imperialistas, que haja exportação de capitais brasileiros - como a colega aqui falou a Virginia Fontes -, a dependência, a associação, o capitalismo dependente e associado aos grandes capitais internacionais, não pode ser negado. Temos o domínio dos grandes monopólios capitalistas em nível mundial. Não tem sentido, por isso, como meus antecessores assinalaram, postular uma possível revolução nacional-libertadora no Brasil, ou seja, inexiste a possibilidade de se desenvolver no Brasil um capitalismo autônomo. Se isso já era errado nos anos 1960, hoje é muito mais; é uma tese totalmente ultrapassada.

No Brasil, hoje, lutar contra o imperialismo significa lutar contra o capitalismo; acho que essa bandeira não pode ser abandonada. A luta antiimperialista, no meu entender, está profundamente associada à luta contra o capitalismo. Na hora que se levanta a bandeira do antiimperialismo , que se luta contra as diferentes formas de dominação do capital externo no Brasil, estamos lutando contra o capitalismo . O capital brasileiro, o monopólio capitalista brasileiro já esta há muito tempo entrelaçado e associado ao capital externo; portanto não há como separar isso. Ao empreender qualquer medida de caráter antiimperialista, se estará, no meu entender, tomando medidas também de caráter anticapitalista.

Uma coisa que eu também gostaria de destacar é que não se pode chegar ao socialismo sem revolução, ou seja, sem a conquista do poder político pelas forças revolucionárias, algo que muitos setores passaram a negar, a considerar que era possível se chegar ao socialismo através apenas de reformas. Os clássicos do marxismo, Marx, Engels, Lênin, Gramsci, nos ensinam que é necessária a conquista do poder pelas forças revolucionárias para que realmente possa ser vitoriosa a proposta socialista. Isso também se revela – e é importante destacar - pela experiência histórica, pois o socialismo não foi vitorioso em nenhum lugar sem revolução, seja na Rússia, em 1917, seja na China, em 1949, seja em Cuba, em 1959. Não se tratando, portanto, apenas de um postulado, de uma concepção teórica, é um ensinamento pratico da revolução. O que a gente percebe é que, sem a tomada do poder político, sem a conquista do poder político, é impossível se chegar ao socialismo.

Entretanto, o que eu falei aqui até agora acho que são temas consensuais, pelo menos entre nós aqui presentes. O grande problema, no meu entender, são as formas de transição ao socialismo, ou, em outras palavras, as táticas de aproximação ao objetivo estratégico traçado, ou seja, à revolução socialista. Trata-se, no meu entender, de um processo de acumulação de forças, de formação de um bloco de forças populares, ou melhor, do que poderia ser chamado de "sujeito povo", hoje muito mais amplo do que apenas o proletariado, capaz de levar adiante uma proposta realista de alternativa de poder. Acho melhor não falar em "bloco histórico", porque isso cria confusão com o conceito adotado por Gramsci. Esse "sujeito povo" abrange, no meu entender, não somente a classe operaria - os trabalhadores ligados diretamente ao processo produtivo, à produção de mais-valia segundo Marx, - mas uma quantidade enorme de trabalhadores que, no modo de produção capitalista de hoje, e no Brasil também, são assalariados, brutalmente explorados. São vitimas do capitalismo, mas que não produzem diretamente a mais-valia; temos profissionais das mais variadas funções - bancários, médicos, professores; a grande maioria são assalariados e devem, no meu entender, constituir o que eu estou chamando de "sujeito povo". Podemos dizer de outra maneira - "bloco de forças populares"; sem duvida, o proletariado, a classe operaria, é o "núcleo duro", o centro, a força mais importante, dentro dessa força aglutinadora. Mas não estamos mais na época de considerar apenas o proletariado como força revolucionária.

A questão das formas de transição - ou das táticas -, que contribuem para a acumulação de forças, para a unificação dos setores atingidos pela exploração capitalista de uma forma ou de outra, é algo fundamental. Temos, nesse sentido, um exemplo histórico significativo. Até 1921, a proposta de Lênin, do Partido da União Soviética e da III Internacional era a luta pela ditadura do proletariado, considerando-se que, ao final da I Guerra Mundial, na Europa existia uma situação revolucionária e havia a expectativa de revoluções na Hungria, na Alemanha, na Itália e em outros países. Esperava-se que se instaurasse a ditadura do proletariado nesses países, como tivera lugar na Rússia em 1917. Entretanto, as revoluções foram derrotadas na Alemanha, na Hungria, na Itália, tornando-se evidente que não havia mais condições para levantar aquelas mesmas bandeiras. Lênin vai propor, diante da nova situação criada, a luta por um governo operário , um governo de frente única , na medida em que a situação revolucionária na Europa havia sido superada. A forma de transição para o socialismo, naquele momento, deveria ser outra; e a bandeira levantada por Lênin de um governo de frente única tinha esse sentido.

A proposta de alternativa de poder deve expressar, no meu entender, os anseios dos setores populares que irão constituir o que eu estou chamando de "sujeito povo", acompanhando o que alguns autores latino-americanos já vêm escrevendo.

Nenhuma revolução se fez sob a bandeira do socialismo: "vamos para a rua lutar pelo socialismo!". Nem a revolução russa, nem o assalto ao palácio de inverno... (Não acredito que o assalto ao palácio de inverno, que aconteceu na Rússia, vá se repetir no Brasil, com o assalto ao palácio do planalto; acho difícil; os caminhos serão outros. Eu gosto muito da frase de Mariáteghi, grande revolucionário latino-americano, quando ele diz que nós temos que fazer a revolução socialista sem copia nem decalque, mas sim como invenção heróica dos nossos povos. Acho que é isso. Temos que encontrar o caminho brasileiro, não vai ser provavelmente o assalto ao palácio do planalto.) ...mas eu estava falando de outro assalto, o assalto ao palácio de inverno; qual era a bandeira naquele momento?; era uma bandeira muito simples, "Pão, Terra e Paz" . O que isso significava na Rússia naquele momento? Os anseios das camadas populares; a guerra ainda não tinha acabado, estávamos em 1917, a grande aspiração era que houvesse paz, que acabasse a guerra, que houvesse pão - a fome era terrível na Rússia naquele momento – e que houvesse terra para os camponeses. Havia uma massa enorme de camponeses na Rússia, que queriam terra; e foi sob essa bandeira que se realizou a revolução russa. Foi correta essa bandeira e contribuiu para que se avançasse rumo ao socialismo. Em nenhum lugar - se olharmos para Cuba, por exemplo, - foi com a bandeira do socialismo que se fez a revolução; foi a luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista, nos anos 50, que mobilizou o povo cubano naquele momento. Quando Fidel proclamou o socialismo em Cuba, por ocasião da invasão da Baia dos Porcos, num momento extremamente grave para a revolução cubana, o que ele disse naquele momento? Fidel não disse: "nós estamos indo para o socialismo"; ele fez um grande comício, com todo aquele entusiasmo e com todo aquele carisma, e no final falou: "vocês não estão gostando que têm comida, têm escola, têm educação?; pois é, tudo isso se chama socialismo". Era isso que Fidel dizia para o povo; então ia mobilizando em torno dos problemas que o povo sentia. Socialismo era muito abstrato; pode nos mobilizar a nós aqui, mas não mobiliza as grandes massas, nem mobilizou em lugar nenhum, nem na Rússia Soviética, nem na Cuba de Fidel.

Nas condições atuais do Brasil, o movimento popular se encontra reconhecidamente desmobilizado e desorganizado, devemos ter a sensatez de reconhecer isso. (A exceção é o MST; isso é indiscutível, reconhecido, inclusive, por lideranças dos demais países latino-americanos. O MST é o maior movimento popular da América Latina.) Nessas condições, as organizações revolucionárias precisam encontrar as reivindicações que possam mobilizar e contribuir para organização dos diferentes setores populares. Acho que o MST encontrou tais reivindicações. Como surgiu o MST há 25 anos atrás? Foi a partir do desespero das massas rurais que estavam sendo expulsas da terra. O movimento surgiu de uma necessidade premente; a Igreja ajudou através das comunidades de base; surgiram lideranças autênticas, que não foram fabricadas em laboratório, a partir da necessidade de luta desses trabalhadores, que se viam sem terra, se viam numa desgraceira total, então começaram a se organizar e daí surgiram suas lideranças. Dessa organização inicial chegou-se ao MST de hoje, que comemorou 25 anos em janeiro. Estive nessas comemorações como convidada: pude ver 2.500 trabalhadores rurais reunidos com um nível de consciência política que é difícil encontrar aqui pela cidade. Isso é muito interessante, foi o resultado de um trabalho de 25 anos de organização e de educação desses trabalhadores.

Para chegar lá, para alcançar uma ligação estreita com os trabalhadores, é necessário estar lá onde estão os trabalhadores, nas fabricas, nos sindicatos, nas escolas, nos bairros, etc. Parece que estou dizendo coisas muito óbvias. O PCB, a vida toda, falou nisso, que era preciso estar lá onde estavam os trabalhadores, mas na realidade estava pouco. Poucos militantes e dirigentes do PCB efetivamente estavam nas bases, todo mundo queria estar na direção. É necessário um trabalho consciente, a longo prazo, como o MST realiza, um trabalho de organização popular, que só pode ser feito em torno das reivindicações dos próprios trabalhadores. Não adianta falar para os trabalhadores: "nós queremos a revolução socialista, vamos para o socialismo, vamos lutar contra o capital". Vai se ficar falando sozinho, não se vai conseguir coisa alguma, vai se conseguir apenas a adesão de um ou outro elemento mais avançado.

No momento em que vivemos no nível atual de organização e mobilização em que se encontram os trabalhadores, não me parecem adequadas, portanto, as propostas seja de "frente anticapitalista", como está nas Teses do PCB, seja de "frente antiimperialista", seja de "frente socialista". Nesse sentido, existem diversas propostas de frentes; eu acho que nenhuma é cabível no momento, porque essas propostas ficariam no papel, estariam fadadas a não se realizar na pratica. Quero lembrar um exemplo da história do PCB: o famoso Manifesto de Agosto de 1950, e seu desdobramento no programa do IV Congresso do PCB, realizado em 1954. O que se dizia? O que se propunha? Nesse Manifesto, reiterado pelo IV Congresso (4 anos depois) , era proposta a formação de uma Frente Democrática de Libertação Nacional. Tratava-se de criar por todo o Brasil comitês dessa Frente Democrática de Libertação Nacional. Bom, o que aconteceu? O PCB nesse período, nos anos 50, era um partido bastante monolítico, com uma disciplina rigorosa, e os militantes do Partido, muitos heroicamente, se jogaram na luta pela construção dessa frente.

Mas a Frente Democrática de Libertação Nacional nunca saiu do papel, nunca foi adiante. Foi adiante a luta pela democracia; o PCB participou ativamente de uma ampla coligação de forças que organizou a campanha do "petróleo é nosso", pelo monopólio estatal do petróleo. Essa campanha realmente convenceu e mobilizou setores amplos, inclusive setores dos trabalhadores, mas também das camadas médias, das lideranças sindicais, etc. Então, esse foi um movimento real, que sensibilizou que mobilizou muita gente. Mas a Frente Democrática de Libertação Nacional, que tinha todo um programa no papel, bonito, etc, não foi para frente, apesar de todo o empenho dos militantes comunistas.

Pessoalmente, eu acho que no Brasil atual não adianta formular propostas de frentes; nós não temos maturidade no movimento popular no Brasil para isso. A meu ver, o mais importante neste momento é elaborar um programa de propostas concretas, viáveis de mobilizar hoje diferentes setores populares e organizá-los, educá-los politicamente. Trata-se de organizá-los em torno do que eles estão a fim, do que eles estão dispostos a fazer. Eu acho muito interessante, e vou até citar aqui, uma declaração de João Pedro Stedile do MST, em que ele propõe:
"Um projeto popular, nos marcos da nossa sociedade, de fortalecermos de fato o Estado para que ele adote uma política econômica que leve ao desenvolvimento do país em beneficio do povo. Quais são os problemas fundamentais do povo no Brasil? Desemprego alto falta de moradia, necessidade de reforma agrária e ausência de educação."
(UOL Notícias – Política – 15/08/2009)
Acho que poderíamos acrescentar: ausência de políticas de saúde pública e também, muito atual, o monopólio estatal do petróleo. Penso que são questões que podem unificar determinados setores. Não vou dizer que o monopólio estatal do petróleo vá unificar toda a sociedade brasileira; certamente não vai; mas há setores, que estão se organizando para isso e podem se mobilizar e, juntamente com setores de trabalhadores urbanos, que já estão mobilizados, avançar nessa luta. O grande problema é como se organizar, como se jogar nesse trabalho, como conquistar os trabalhadores que estão completamente manipulados por todo tipo de pelegos. É nesse trabalho que vão surgir lideranças novas.

Como reconhece o próprio Stedile: "Não basta colocar no papel 'esse é o nosso projeto'. É preciso construir, acumular forças populares que atuem para a construção desse projeto."(IDEM) Eu diria: é preciso mobilizar e organizar amplos setores populares em torno dos seus problemas reais. O decisivo será sempre a pressão popular. A pressão popular pode e deve arrancar conquistas seja do Estado seja dos patrões. Sem pressão popular não se vai conquistar nada significativo.

No processo de organização e luta por tais reivindicações, cabe aos comunistas e aos revolucionários de uma maneira geral (e ninguém tem o monopólio desse tipo de liderança) mostrar às massas que a solução definitiva dos problemas existentes só será possível com o socialismo. Aí se vê a importância da educação; novamente citarei o MST, que é o movimento concreto que temos no Brasil hoje, que, ao mesmo tempo que organiza os trabalhadores, que os mobiliza em torno de suas reivindicações, procura educá-los, mostrando que a única alternativa é o socialismo. Trata-se, pois, da formação de quadros capazes de liderar o movimento, pois as lideranças surgem espontaneamente, não são fabricadas em laboratório, não adianta designar uma pessoa, por melhor que ela seja, e colocá-la como líder. Isso não funciona; é na luta que vão surgir as lideranças; e cabe aos revolucionários, aos marxistas, educar esses novos líderes, para que eles possam exercer seu papel de liderança e entendam que o socialismo é a única solução definitiva para o problema da terra, da saúde publica, para todos os problemas que afetam o povo brasileiro, para acabar com a exploração capitalista e imperialista.

Mas há fases intermediarias; é o que chamamos de momentos de transição, para chegar ao socialismo. Para chegar lá, sem cair no reformismo, é necessária a conquista do poder político, ou seja, a revolução. Eu já me referi a isso: a educação das lideranças, dos militantes mais ativos, que forem se destacando nos movimentos populares. Eles devem ser educados, devem ser preparados e transformados em quadros revolucionários, com o entendimento da necessidade de dominarem uma teoria científica, que os oriente na marcha para a conquista do poder político. E essa teoria é o marxismo. Para dominá-la, é necessário estudar, conhecer a fundo a teoria marxista.

Isso é diferente de levantar de imediato a bandeira do socialismo ou mesmo a luta aberta contra o capitalismo, pois tal postura, tal tese, não vai mobilizar. Ao mesmo tempo, quero destacar mais uma vez a importância enorme da formação de quadros com conhecimento do marxismo, a formação revolucionária dos líderes que surgirão no processo de luta e não nos gabinetes. Esse é, a meu ver, o caminho real, efetivo, nos dias de hoje, no Brasil, para dar passos concretos rumo ao socialismo.

A experiência das esquerdas, tanto no Brasil quanto em muitos outros países, revela que existe uma certa tradição de envolver-se em discussões intermináveis e, entretanto, não se aproximar dos trabalhadores, não procurá-los lá onde eles estão, não realizar o trabalho de organizá-los em torno de suas reivindicações, tentando "abrir a cabeça" de suas lideranças, de seus militantes, procurando educá-los, para avançar na luta. É um trabalho difícil? Sem dúvida. É um trabalho em longo prazo? Sim, indiscutivelmente.

Existe uma visão meio romântica – influenciada pela Revolução Cubana, que efetivamente teve aspectos românticos –, de que Fidel desembarcou com 12 revolucionários numa canoa e fez a revolução, subiu a montanha e fez a revolução. Na realidade, quando Fidel fez isso junto a Ernesto Guevara e a outros revolucionários, havia o Movimento 26 de julho, que existia desde o assalto ao quartel de Moncada. Quando Fidel pronunciou aquele discurso "A história me absolverá", ainda em 1953, já havia todo um trabalho do Movimento 26 de julho, que depois foi um suporte fundamental da guerrilha na Sierra Maestra. Havia nas cidades, contra a ditadura de Fulgêncio Batista, um movimento muito forte, um movimento extremamente organizado, que garantia os recursos financeiros para a guerrilha, assim como vestimentas, armamento e combatentes. Muitos trabalhadores se mobilizaram, mas muitos revolucionários eram também estudantes. Foram organizados, mobilizados, conscientizados, foram educados pelo Movimento 26 de julho e eram enviados para fortalecer a guerrilha. A guerrilha sobreviveu por causa disso e, também, conquistando o apoio dos camponeses, pois levantava os problemas que afetavam os camponeses de Sierra Maestra. Houve o aspecto romântico, mas o principal foi o trabalho de base, o trabalho de educação, o trabalho de arrecadação de fundos financeiros, fundamental; sem isso, não seria possível mandar armamento para a guerrilha, importar armamento estrangeiro, que era enviado para a guerrilha. Eram enviados também alimentos, fardamentos, diversos recursos, roupas e gente, gente que era formada na cidade e que estava disposta a abandonar tudo e ir para a guerrilha. Então, se vê o nível de organização que existiu e garantiu que a guerrilha fosse vitoriosa. Claro que houve muita luta, e que não foi fácil essa luta, mas, sem trabalho de base, sem organização popular - e organização popular só se dá em torno do que o povo esta sentido -, sem isso, não se vai para frente, vamos ficar reunindo nós conosco mesmos; podem até surgir questões muito interessantes, mas desligadas das lutas reais, dos interesses reais dos trabalhadores.

Lamentavelmente, no Brasil hoje, principalmente depois de todos esses anos de ditadura militar, de toda a repressão que foi desencadeada pela ditadura, nosso povo está bastante desmobilizado – não por culpa do trabalhador –, mas devido à força da classe dominante em nosso país. Eu sempre digo que a história do Brasil é uma história trágica, é uma história em que a classe dominante sempre teve muita força; tivemos quatro séculos de escravidão, com donos de escravos muito poderosos, donos de vastas extensões de terras, que sempre reprimiram com grande violência qualquer movimento popular que surgisse. Durante o século XIX, por exemplo, os inúmeros movimentos populares, que tiveram lugar em diferentes pontos do país, foram reprimidos com extrema violência – fuzilamentos, enforcamentos, etc. As classes dominantes no Brasil nunca permitiram que os movimentos populares se organizassem, que pudessem ser vitoriosos.

Na história do Brasil, pelo que pude pesquisar o único movimento de contestação do poder político que não foi derrotado, embora não tenha sido vitorioso, foi a Coluna Prestes. Todos os demais movimentos populares no Brasil foram derrotados. Sempre foram liquidados pelo Exército e pela polícia. Essa é uma herança nossa muito diferente até da de nossos visinhos latino-americanos. Se olharmos para a Argentina, para o Uruguai, para o Chile, veremos que, diferentemente deles, não temos no Brasil tradição de organização popular. Há que ressaltar que, no Brasil, os comunistas do PCB fizeram grandes esforços no sentido de organizar os trabalhadores. Sou testemunha disso; mas era muito difícil, devido a uma serie de problemas – tanto uma realidade complexa quanto os erros táticos e estratégicos cometidos pelo Partido. Era muito difícil organizar os setores populares. Então, fazer isso não é fácil, mas é possível, é possível por que o capitalismo esta aí, as contradições estão aí, a luta de classes está presente, os trabalhadores estão sendo esmagados e vão ter que se rebelar, vão começar a fazer greves. Hoje mesmo há uma greve dos bancários, como há outras greves acontecendo neste momento. É junto aos trabalhadores em luta que os comunistas devem estar organizando e procurando levar adiante essas lutas.

Bom, agradeço mais uma vez o convite para participar deste debate. Obrigada.
[*] Professora. Palestra realizada em 24/Setembro/2009 no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro no âmbito do seminário para debate da tese principal do

Outros outubros virão!

(Declaração Política do XIV Congresso do PCB)

Rio de Janeiro, outubro de 2009

Nascemos em 1922 e trazemos marcadas as cicatrizes da experiência histórica de nossa classe, com seus erros e acertos, vitórias e derrotas, tragédias e alegrias. É com esta legitimidade e com a responsabilidade daqueles que lutam pelo futuro que apresentamos nossas opiniões e propostas aos trabalhadores brasileiros.

Os comunistas brasileiros, reunidos no Rio de Janeiro, nos dias 9 a 12 de outubro, no XIV Congresso Nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB), avaliamos que o sistema capitalista é o principal inimigo da humanidade e que sua continuidade representa uma ameaça para a espécie humana. Por isso, resta-nos apenas uma saída: superar revolucionariamente o capitalismo e construir a sociedade socialista, como processo transitório para emancipação dos trabalhadores, na sociedade comunista.

Uma das principais manifestações dos limites históricos do capitalismo é a atual crise econômica mundial, que revelou de maneira profunda e didática todos os problemas estruturais desse sistema de exploração de um ser humano por outro: suas contradições, debilidades, capacidade destruidora de riqueza material e social e seu caráter de classe. Enquanto os governos capitalistas injetam trilhões de dólares para salvar os banqueiros e especuladores, os trabalhadores pagam a conta da crise com desemprego, retirada de direitos conquistados e aprofundamento da pobreza.

Mesmo feridos pela crise, os países imperialistas realizam uma grande ofensiva para tentar recuperar as taxas de lucro e conter o avanço dos processos de luta popular que vêm se realizando em várias partes do mundo. Promovem guerras contra os povos, como no Iraque e no Afeganistão, armam Israel para ameaçar a população da região e expulsar os palestinos de suas terras. Na América Latina, desenvolvem uma política de isolamento e sabotagem dos governos progressistas da região, com a reativação da IV Frota e a transformação da Colômbia numa grande base militar dos Estados Unidos. Toda essa estratégia visa a ameaçar Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e até mesmo países cujos governos não se dispõem a promover profundas mudanças sociais, como é o caso do Brasil, tudo para garantir o controle das extraordinárias riquezas do continente, entre elas o Pré-Sal, a Amazônia, a imensa biodiversidade e o Aquífero Guarani.

A escalada de violência do imperialismo contra os povos, agravada pela crise do capitalismo e por sua necessidade de saquear as riquezas naturais dos países periféricos e emergentes acentua a necessidade de os comunistas colocarmos na ordem do dia o exercício do internacionalismo proletário. Episódios recentes, como a tentativa de separatismo na Bolívia, os covardes crimes contra a humanidade na Faixa de Gaza, o golpe em Honduras, as ameaças ao Irã e à Coreia do Norte somam-se ao permanente bloqueio desumano a Cuba Socialista, a uma década de manobras com vistas à derrubada do governo antiimperialista na Venezuela e à ocupação do Iraque e do Afeganistão.

O PCB continuará no Brasil com sua consequente solidariedade aos povos em suas lutas contra o capital e o imperialismo, independentemente das formas que as circunstâncias determinem. O papel ímpar do PCB na solidariedade aos povos em luta se radica na sua independência política com relação ao governo brasileiro e na sua visão de mundo internacionalista proletária.

A crise demonstra de maneira cristalina a necessidade de os povos se contraporem à barbárie capitalista e buscarem alternativas para a construção de uma nova sociabilidade humana. Em todo o mundo, com destaque para a América Latina, os povos vêm resistindo e buscando construir projetos alternativos baseados na mobilização popular, procurando seguir o exemplo de luta da heróica Cuba, que ficará na história como um marco da resistência de um povo contra o imperialismo.

Nós, comunistas brasileiros, temos plena consciência das nossas imensas responsabilidades no processo de transformação que está se desenvolvendo na América Latina, não só pelo peso econômico que o Brasil representa para a região, mas também levando em conta que vivemos num país de dimensões continentais, onde reside o maior contingente da classe trabalhadora latino-americana. Consideramo-nos parte ativa desse processo de transformação e integrantes destemidos da luta pelo socialismo na América Latina e em todo o mundo.

Nesse cenário, o Estado brasileiro tem jogado papel decisivo no equilíbrio de forças continentais, mas na perspectiva da manutenção da ordem capitalista e não das mudanças no caminho do socialismo. Tendo como objetivo central a inserção do Brasil entre as potências capitalistas mundiais, o atual governo, em alguns episódios, contraria certos interesses do imperialismo estadunidense. No entanto, estas posturas pontualmente progressistas buscam criar um terceiro pólo de integração latino-americana, de natureza capitalista. Ou seja, nem ALCA, nem ALBA, mas sim a liderança de um bloco social-liberal, em aliança com países do Cone Sul, dirigidos por forças que se comportam também como uma "esquerda responsável", confiável aos olhos do imperialismo e das classes dominantes locais, contribuindo, na prática, para aprofundar o isolamento daqueles países que escolheram o caminho da mobilização popular e do enfrentamento.

O respaldo institucional a alguns governos mais à esquerda na América Latina tem sido funcional à expansão do capitalismo brasileiro, que se espalha por todo o continente, onde empresas com origem brasileira se comportam como qualquer multinacional. Como o objetivo central é a inserção do Brasil como potência capitalista, o governo Lula não hesita em adotar atitudes imperialistas, como comandar a ocupação do Haiti para garantir um golpe de direita, retaliar diplomaticamente o Equador para defender uma empreiteira brasileira ou promover exercícios militares com tiro real na fronteira com o Paraguai, para defender os latifundiários brasileiros da soja diante do movimento camponês do país vizinho e manter condições leoninas no Tratado de Itaipu.

O capitalismo brasileiro é parte do processo de acumulação mundial e integrante do sistema de poder imperialista no mundo, ressaltando-se que as classes dominantes brasileiras estão umbilicalmente ligadas ao capital internacional. A burguesia brasileira não disputa sua hegemonia com nenhum setor pré-capitalista. Pelo contrário: sua luta se volta fundamentalmente na disputa de espaços dentro da ordem do capital imperialista, ainda que se mantenha subordinada a esta, inclusive no sentido de evitar a possibilidade de um processo revolucionário, no qual o proletariado desponte como protagonista.

Apesar de ainda faltarem condições subjetivas – sobretudo no que se refere à organização popular e à contra-hegemonia ao capitalismo – entendemos que a sociedade brasileira está objetivamente madura para a construção de um projeto socialista: trata-se de um país em que o capitalismo se tornou um sistema completo, monopolista, capaz de produzir todos os bens e serviços para a população. Uma sociedade em que a estrutura de classes está bem definida: a burguesia detém a hegemonia econômica e política, o controle dos meios de comunicação e o aparato estatal, enquanto as relações assalariadas já são majoritárias e determinantes no sistema econômico. Formou-se, assim, um proletariado que se constitui na principal força para as transformações sociais no País.

Do ponto de vista político e institucional, o Brasil possui superestruturas tipicamente burguesas, em pleno funcionamento: existe um ordenamento jurídico estabelecido, reconhecido e legitimado, com instituições igualmente consolidadas nos diferentes campos do Estado, ou seja, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Formou-se também uma sociedade civil burguesa, enraizada e legitimada, que consolidou a hegemonia liberal burguesa, mediante um processo que se completa com poderosa hegemonia na informação, na organização do ensino, da cultura, elementos que aprimoram e fortalecem a dominação ideológica do capital no país.

Portanto, sob todos os aspectos, o ciclo burguês já está consolidado no Brasil. Estamos diante de uma formação social capitalista desenvolvida, terreno propício para a luta de classes aberta entre a burguesia e o proletariado. De um lado, está o bloco conservador burguês, formado pela aliança entre a burguesia monopolista associada ao capital estrangeiro e aliada ao imperialismo, a burguesia agrária com o monopólio da terra, a oligarquia financeira, com o monopólio das finanças, além de outras frações burguesas que permeiam o universo da dominação do capital.

Esta hegemonia do bloco conservador adquiriu maior legitimidade para implantar as políticas de governabilidade e governança necessárias à consolidação dos interesses do grande capital monopolista, com a captura de um setor político, representante da pequena burguesia e com ascendência sobre importante parte dos trabalhadores, uma vez que se tornava essencial neutralizar a resistência destes e das camadas populares, através da cooptação de parte de suas instituições e organizações.

Do outro lado, está o bloco proletário, hoje submetido à hegemonia passiva conservadora. Ainda que resistindo, encontra-se roubado de sua autonomia e independência política, acabando por servir de base de massa que sustenta e legitima uma política que não corresponde a seus reais interesses históricos. Constituído especialmente pela classe operária, principal instrumento da luta pelas transformações no país, pelo conjunto do proletariado da cidade e do campo, pelos movimentos populares e culturais anticapitalistas e antiimperialistas, por setores da pequena burguesia, da juventude, da intelectualidade e todos que queiram formar nas fileiras do bloco revolucionário do proletariado, em busca da construção de um processo para derrotar a burguesia e seus aliados e construir a sociedade socialista.

O cenário da luta de classes no âmbito mundial e suas manifestações em nosso continente latino-americano, o caráter do capitalismo monopolista brasileiro e sua profunda articulação com o sistema imperialista mundial, as características de nossa formação social como capitalista e monopolista, a hegemonia conservadora e sua legitimação pela aliança de classes de centro-direita, os resultados deste domínio sobre os trabalhadores e as massas populares no sentido da precarização da qualidade de vida, desemprego, crescente concentração da riqueza e flexibilização de direitos nos levam a afirmar que o caráter da luta de classes no Brasil inscreve a necessidade de uma ESTRATÉGIA SOCIALISTA.

São essas condições objetivas que nos permitem definir o caráter da revolução brasileira como socialista. Afirmar o CARÁTER SOCIALISTA da revolução significa dizer que as tarefas colocadas para o conjunto dos trabalhadores não podem ser realizadas pela burguesia brasileira, nem em aliança com ela. Estas tarefas só poderão ser cumpridas por um governo do Poder Popular, na direção do socialismo. O desenvolvimento das forças materiais do capitalismo no Brasil e no mundo permite já a satisfação das necessidades da população mundial, mas está em plena contradição com a forma das relações sociais burguesas que acumulam privadamente a riqueza socialmente produzida, cujo prosseguimento ameaça a produção social da vida, a natureza e a própria espécie humana.

A forma capitalista se tornou antagônica à vida humana. Para sobreviver, o capital ameaça a vida; portanto, para manter a humanidade devemos superar o capital. É chegada a hora, portanto, de criar as condições para a revolução socialista.

Nas condições de acirramento da luta de classes em nosso país, as lutas específicas se chocam com a lógica do capital. A luta pela terra não encontra mais como adversário o latifúndio tradicional, mas o monopólio capitalista da terra, expresso no agronegócio. A luta dos trabalhadores assalariados se choca com os interesses da burguesia, acostumada às taxas de lucros exorbitantes e à ditadura no interior das fábricas. A luta ecológica se choca com a depredação do meio ambiente, promovida pelo capital. As lutas dos jovens, das mulheres, dos negros, das comunidades quilombolas, índios, imigrantes e migrantes se chocam com a violência do mercado, seja na desigualdade de rendimentos, no acesso a serviços elementares, à cultura e ao ensino, porque o capital precisa transformar todas as necessidades materiais e simbólicas em mercadoria para manter a acumulação, ameaçando a vida e destruindo o meio ambiente.

A definição da estratégia da revolução como socialista não significa ausência de mediações políticas na luta concreta, nem é incompatível com as demandas imediatas dos trabalhadores. No entanto, a estratégia socialista determina o caráter da luta imediata e subordina a tática à estratégia e não o inverso, como formulam equivocadamente algumas organizações políticas e sociais. Pelo contrário, os problemas que afligem a população, como baixos salários, moradia precária, pobreza, miséria e fome, mercantilização do ensino e do atendimento à saúde, a violência urbana, a discriminação de gênero e etnia, são manifestações funcionais à ordem capitalista e à sociedade baseada na exploração. A lógica da inclusão subalterna e da cidadania rebaixada acaba por contribuir para a sobrevida do capital e a continuidade da opressão.

O que hoje impede a satisfação das necessidades mais elementares da vida em nosso país não é a falta de desenvolvimento do capitalismo. Pelo contrário, nossas carências são produto direto da lógica de desenvolvimento capitalista adotado há décadas sob o mesmo pretexto, de que nossos problemas seriam resolvidos pelo desenvolvimento da economia capitalista. Hoje, a perpetuação e o agravamento dos problemas que nos afligem, depois de gerações de desenvolvimento capitalista, são a prova de que este argumento é falso.

Portanto, nossa estratégia socialista ilumina a nossa tática, torna mais claro quem são nossos inimigos e os nossos aliados, permite identificar a cada momento os interesses dos trabalhadores e os da burguesia e entender como as diferentes forças políticas concretas agem no cenário imediato das lutas políticas e sociais. Esse posicionamento também busca sepultar as ilusões reformistas, que normalmente levam desorientação ao proletariado, e educá-lo no sentido de que só as transformações socialistas serão capazes de resolver os seus problemas.

No Brasil, nosso partido trabalha na perspectiva de constituir oBloco Revolucionário do Proletariado, como instrumento de aglutinação de forças políticas e sociais antiimperialistas e anticapitalistas para realizar as transformações necessárias à emancipação dos trabalhadores. Nosso objetivo é derrotar o bloco de classe burguês e seus aliados que, mesmo com disputas e diferenciações internas, impõem a hegemonia conservadora e buscam a todo custo desenvolver a economia de mercado, mantida a subordinação ao capital internacional, ao mesmo tempo em que afastam os trabalhadores da disputa política, impondo um modelo econômico concentrador de renda e ampliador da miséria, procurando permanentemente criminalizar os movimentos populares, a pobreza e todos aqueles que ousam se levantar contra a hegemonia do capital. Para consolidar o poder burguês e legitimá-lo, colocam toda a máquina do Estado a serviço do capital.

Por isso mesmo, não há nenhuma possibilidade de a burguesia monopolista, em todos seus setores e frações, participar de uma aliança que vá além do horizonte burguês e capitalista. Isso significa que a nossa política de aliança deve se materializar no campo proletário e popular. A aliança de classes capaz de constituir o Bloco Revolucionário do Proletariado deve fundamentalmente estar estruturada entre os trabalhadores urbanos e rurais, os setores médios proletarizados, setores da pequena burguesia, as massas trabalhadoras precarizadas em suas condições de vida e trabalho que compõem a superpopulação relativa. Isso significa que a nossa tática deve ser firme e ampla. Ao mesmo tempo em que não há alianças estratégicas com a burguesia, todo aquele que se colocar na luta concreta contra a ordem do capital será um aliado em nossa luta, da mesma forma que aqueles setores que se prestarem ao papel de serviçais subalternos da ordem, se colocarão no campo adversário e serão tratados como tal.

A principal mediação tática de nossa estratégia socialista é, portanto, a criação das condições que coloquem os trabalhadores em luta, a partir de suas demandas imediatas, na direção do confronto com as raízes que determinam as diferentes manifestações da exploração, da opressão e da injustiça, ou seja, a ordem capitalista.

Assim, estamos propondo e militando no sentido da formação de uma frente de caráter antiimperialista e anticapitalista, que não se confunda com mera coligação eleitoral. Uma frente que tenha como perspectiva a constituição do Bloco Revolucionário do Proletariado como um movimento rumo ao socialismo.

A constituição do proletariado como classe que almeja o poder político e procura ser dirigente de toda a sociedade é um projeto em construção e não existem fórmulas prontas para torná-lo efetivo politicamente. Como tudo em processo de formação, a constituição desse bloco exige que o PCB e seus aliados realizem um intenso processo de unidade de ação na luta social e política, de forma que cada organização estabeleça laços de confiança no projeto político e entre as próprias organizações.

Reafirmamos a necessidade da conformação da classe trabalhadora como classe e, portanto, enquanto partido político, não pela afirmação dogmática, arrogante e pretensiosa de conformação de vanguardas autoproclamadas, mas pela inadiável necessidade de contrapor à ordem do capital - unitária e organizada por seu Estado e cimentada na sociedade por sua hegemonia - uma alternativa de poder que seja capaz de emancipar toda a sociedade sob a direção dos trabalhadores.

Sabemos que este é um momento marcado por enorme fragmentação e dispersão das forças revolucionárias, que corresponde objetivamente ao momento de defensiva que se abateu sobre os trabalhadores, mas também acreditamos que, tão logo o proletariado se coloque em movimento, rompa com a passividade própria dos tempos de refluxo e inicie uma ação independente enquanto classe portadora de um projeto histórico, que é o socialismo, as condições para a unidade dos revolucionários serão novamente possíveis.

Desde o XIII Congresso, o PCB vem se mantendo na oposição independente ao governo Lula, por entender que este governo trabalha essencialmente para manter e fortalecer o capital, restando à população apenas algumas migalhas como compensação social, por meio de programas que canalizam votos institucionalizando a pobreza e subordinando a satisfação das necessidades sociais ao crescimento da economia capitalista, verdadeira prioridade do governo.

O governo atual se tem pautado pela cooptação de partidos políticos e movimento sociais, buscando amortecer e institucionalizar a luta de classes, desmobilizando e enfraquecendo os trabalhadores em sua luta contra o capital. As antigas organizações políticas e sociais, que nasceram no bojo das lutas do final dos anos 70, se transformaram em partidos e organizações da ordem, ainda que guardem referência sobre a classe e abriguem militantes que equivocadamente, alguns de maneira sincera, ainda procuram manter ou resgatar o que resta de postura de esquerda. Desta forma, estas organizações acabaram por perder a possibilidade histórica de realizar o processo de mudanças sociais no país. Transformaram-se em organizações chapa-branca, base de sustentação de um governo que, vindo do campo de esquerda, disputou as eleições com uma proposta de centro esquerda, construiu uma governabilidade de centro direita e acabou por implementar um projeto que corresponde, na essência, aos interesses do grande capital monopolista, aproximando-se muito mais de um social liberalismo do que de uma social democracia.

É necessária, por isso, uma reorganização dos movimentos populares, especialmente do movimento sindical. O PCB trabalhará pela reorganização do sindicalismo classista e pela unidade dos trabalhadores, através do fortalecimento de sua corrente Unidade Classista e da Intersindical (Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora), atuando nesta para recompor o campo político que a originou e ampliá-lo com outras forças classistas. A função principal da Intersindical é a de ser, a partir da organização e das lutas nos locais de trabalho, um espaço de articulação e unidade de ação do sindicalismo que se contrapõe ao capital, visando à construção, sem açodamento nem acordos de cúpula, de uma ampla e poderosa organização intersindical unitária, que esteja à altura das necessidades da luta de classes. Nesse sentido, o PCB reitera a proposta de convocação, no momento oportuno, do Encontro Nacional da Classe Trabalhadora (ENCLAT), como consolidação deste processo de reorganização do movimento sindical classista.

Também iremos trabalhar com afinco para a reorganização do movimento juvenil, especialmente pelo resgate da União Nacional dos Estudantes como instrumento de luta e de ação política da juventude, como foi ao longo de sua história. Mas a reconstrução do movimento estudantil brasileiro não se dará através da mera disputa pelos aparelhos e cargos nas organizações estudantis, tais como a UNE, a UBES e demais. Será necessária a incisiva atuação dos comunistas nas entidades de base, nas escolas e universidades, para que o movimento estudantil retome sua ação protagonista nas lutas pela educação pública emancipadora e pela formação de uma universidade popular, capaz de produzir conhecimento a serviço da classe trabalhadora e contribuir para a consolidação da contra-hegemonia proletária. Ou seja, o movimento estudantil brasileiro precisa ser resgatado da sua letargia para assumir o papel de organizador da juventude que quer lutar e construir o socialismo no Brasil.

Procuraremos desenvolver também laços com todos os movimentos populares, na resistência cotidiana dos trabalhadores em seus bairros e locais de trabalho, de forma a estabelecermos uma relação mais estreita com a população pobre e os trabalhadores em geral, ajudando-os a se organizarem para a luta.

A luta pela terra no Brasil se choca diretamente com a ordem capitalista que deve ser enfrentada, não apenas para se garantir o acesso à terra mas para a mudança profunda do modelo de desenvolvimento agrícola contra a lógica mercantil, monopolista e imperialista do agronegócio. A aliança de classes necessária à construção de uma estratégia socialista para o Brasil passa pela união entre os trabalhadores do campo e da cidade, dos pequenos agricultores e assentados na luta por um Poder Popular comprometido com a desmercantilização da vida e o fim da propriedade, empenhados na construção de uma sociedade socialista. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST)conta com nossa irrestrita solidariedade e nossa parceria, em sua necessária articulação com o movimento sindical, juvenil e popular.

O PCB se empenhará também pela criação de um amplo e vigoroso movimento que venha às ruas exigir, através de um plebiscito e outras formas de luta, uma nova Lei do Petróleo, que contemple a extinção da ANP, o fim dos leilões das bacias petrolíferas, a retomada do monopólio estatal do petróleo e aREESTATIZAÇÃO DA PETROBRÁS (como empresa pública e sob controle dos trabalhadores), de forma a preservar a soberania nacional e assegurar que os extraordinários recursos financeiros gerados pelas nossas imensas reservas de recursos minerais sejam usados para a solução dos graves problemas sociais brasileiros e não para fortalecer o imperialismo e dar mais lucros ao grande capital.

Da mesma forma, daremos importância especial à frente cultural, estreitando os laços com artistas e intelectuais. Desde sempre a arte que se identifica com o ser humano é também a que denuncia a desumanidade do capital e da ordem burguesa. Desenvolvendo um trabalho contra a mercantilização da arte e do conhecimento, na resistência ao massacre imposto pela indústria cultural capitalista, o PCB apoiará a luta em defesa da plena liberdade de produção artística, intelectual e cultural e pela criação de amplos espaços para as manifestações artísticas e culturais populares, como parte inseparável de nossa luta pela emancipação humana.

Devido ao caráter fundamental da participação de intelectuais comprometidos com a luta pela emancipação do proletariado e pela hegemonia ideológica, política e cultural, o PCB jogará grande peso na tarefa permanente de formação, aperfeiçoamento e atualização teórica e política de seus militantes e na relação com intelectuais que detêm a mesma perspectiva revolucionária.

Nosso Partido vem realizando um intenso esforço no sentido de se transformar numa organização leninista, capaz de estar à altura das tarefas da Revolução Brasileira. Realizamos, no ano passado, a Conferência Nacional de Organização, na qual reformulamos o estatuto, trocamos o conceito de filiado pelo de militante, reforçamos a direção coletiva e o centralismo democrático. Estamos desenvolvendo um trabalho de construção partidária a partir das células, nos locais de trabalho, moradia, ensino, cultura e lazer, com o critério fundamental do espaço comum de atuação e luta, preferencialmente nos locais onde a população já desenvolve sua atuação cotidiana. O XIV Congresso Nacional coloca num patamar superior a reconstrução revolucionária do PCB.

O PCB, como um dos instrumentos revolucionários do proletariado, quer estar à altura dos desafios para participar da história de nossa classe na construção dos meios de sua emancipação revolucionária. Mais do que desejar ser uma alternativa de organização para os comunistas revolucionários, para os quais as portas do PCB estão abertas, queremos ser merecedores desta possibilidade, por buscarmos traçar estratégias e caminhos que tornem possível a revolução brasileira.

O PCB trabalhará de todas as formas e empregará todos os meios possíveis para contribuir com a derrota da hegemonia burguesa no Brasil, visando socializar os meios de produção capitalistas e transferi-los para o Poder Popular, assim como construir uma nova hegemonia política, social, econômica, cultural e moral da sociedade, de forma a que a população brasileira possa usufruir plenamente de uma nova sociabilidade, baseada na solidariedade, na cooperação entre os trabalhadores livres e emancipados do jugo do capital. Por criarem toda a riqueza os trabalhadores têm o direito de geri-la de acordo com suas necessidades, única forma de construir um novo ser humano e chegar a uma sociedade sem classes e sem Estado: uma sociedade comunista.

Viva o Internacionalismo Proletário!

Viva a Revolução Socialista!

Viva o Partido Comunista Brasileiro!

XIV Congresso Nacional do PCB, Rio de Janeiro, outubro de 2009